01 março 2007

desta água...

- Bom dia Júlio – cumprimentou Ricardo ao entrar no café.
- Dr. Ricardo, essa saúde?
O Júlio, agora com mais de 70 anos, recebeu uma educação conservadora que o levou a manter um tratamento deferente para com os clientes mais respeitáveis, tendo progredido apenas de “Menino Ricardo” a “Sr. Alferes”, fixando-se para sempre em “Dr. Ricardo” desde que se soube do diploma.

Ricardo Sequeira, terceiro filho de um conceituado advogado da região, frequentou a Faculdade de Economia, onde se licenciou discretamente em Gestão de Empresas. Começou a carreira profissional na maior indústria transformadora do distrito, onde ao fim de 12 anos chegou a Director dos Serviços Administrativos.
Era uma pessoa de inabalável honestidade, princípio herdado do pai. Esta forte herança paterna acabaria também por confinar o Ricardo a uma carreira discreta: o demasiadamente rigoroso sentido de dever e de respeito pelo status quo que lhe foi transmitido transformou-o numa pessoa inibida. Talvez um outro tipo de vivência na mais tenra idade tivesse permitido uma maior projecção à carreira do Ricardo – pelo menos na empresa onde trabalhou, em que era seguramente o quadro de maior capacidade.

Teve uma vida familiar autónoma de acordo com aquilo que dele era esperado, pelo menos durante os anos em que conseguiu sustentar o casamento, baseado na amizade mais que em qualquer outro tipo de sentimento. Mesmo reconhecendo nele um marido dedicado e um fiel amigo, a mulher acabou por lhe levar parte da vida para outra cidade, argumentando que “não tenho mais vida para isto, lamento Ricardo, ambiciono mais que ter que comer e onde dormir”.
Por mais que “Joana, por favor não vás, eu preciso de ti”, a Joana foi mesmo e a filha única do casal, ainda sem idade para escolher, acompanhou a mãe na viagem. Em rigor, o Ricardo nunca a tal se oporia, por se julgar incapaz de proporcionar à filha uma vida com tanta qualidade quanto a mãe – e por o conformismo fazer parte da natureza dele. A partir desse dia, ele continuou a ser pai dela, mas ela nunca mais foi filha dele.

Tal como ele, os móveis da casa que agora só ele habitava e a roupa que usava diariamente foram envelhecendo e passando de moda, sem nunca haver lugar a qualquer renovação. Na fábrica, se até então o Dr. Sequeira pouco dava nas vistas, agora era quase um fantasma: entrava pontual e silenciosamente às oito e meia e fechava-se no gabinete, de onde raramente saía antes das sete da tarde.
No dia em que a multinacional adquiriu o controlo das acções da fábrica que o empregava, aquele Director de 50 anos tornou-se dispensável, já que “queremos uma empresa moderna, o Sequeira não serve, faz tudo certinho, mas não passa daquilo”.
Servir, até servia, mas ninguém percebeu. Aliás, alguém percebeu: ele mesmo. Mas nem isso o faria mudar.

Há dois meses, encomendaram novo mobiliário para o gabinete do Ricardo, que iria ser usado por um tipo que mal falava português e que “nem trinta anos deve ter, parece um puto”, dizia-se na fábrica. “Coitado do Dr. Sequeira, durante tantos anos foi ele quem andou com isto para a frente e agora mandam-no para casa”.

- Júlio, dá-me a minha Macieira gelada.
- Ó Sr. Dr., são oito e meia da manhã: não prefere que eu lhe tire um galão bem quentinho? Isto vai fazer-lhe mal…
- Júlio, deixa-te de sermões e dá-me a porcaria da Macieira. Conheces-me há muitos anos e já devias saber que de todos os males, este é o único que me faz sentir bem.

1 comentário:

V. disse...

E porque se não formos fieis a nós próprios seremos a quê?