24 outubro 2008

desta outra água...

Aos sábados, ele sentava-se na mesa do canto, pedia a empada e a coca-cola "de garrafa, tem menos gás que a de lata", comia lentamente e em silêncio, sempre com aquela cara triste - seria zangada? -, sem um sorriso, sem uma expressão, sequer. Raramente vinha acompanhado e menos vezes ainda repetia a companhia, eram quase sempre caras novas as que ele dava a conhecer ao pessoal do café, aquelas sorridentes e bem dispostas raparigas, de cuja disposição ele desconfiava num praticamente inaudível "que foi que eu disse? por que se riem de mim?", pergunta que invariavelmente era respondida com um divertido "não é nada!".
Ao longo dos anos em que esta rotina se repetia, contaram-se pelos dedos das mãos os sorrisos que elas viram na cara dele; eram sorrisos radiosos e encantadores, e, afinal, no Luís, "o do carro azul", como tantas vezes lhe chamavam, parecia subsistir uma réstia de esperança e de alegria - ninguém podia estar assim tão zangado com a vida...
Naquela tarde de Outono entrou uma vez mais na porta, com o habitual "olá, boa tarde" em tom assustador, mais que cordial. Quebrou a regra e pediu um café e um pastel de nata, "um daqueles mais bronzeados", sentou-se na mesa mesmo à frente do balcão, a dele estava ocupada por um casal de sexagenários que tomavam conta da neta, uma irritante criança com uns 7 anos, dois laçarotes no cabelo a mais e pelos menos uma meia dúzia de palmadas a menos, a quem o Luís lançava uns frequentes e eficazes olhares de reprovação: ele sabia que conseguia assustar - nem que fosse apenas uma criança.
Do outro lado do balcão vinha o habitual sussurro da coscuvilhice, os comentários entre dentes e os risos inconvenientes - que só a ele podiam ser dirigidos. Hoje, falava-se das regras quebradas: do pastel de nata e do café em vez da "cola, de garrafa", que tinha menos gás que a de lata e da mesa que não era a mesma, mais perto delas, facto que as obrigava a comentar mais baixo. O quebrar da terceira regra calou-lhes os risos e os comentários: as lágrimas não paravam de correr pela face do Luís.